quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Um pouco de deleite (Sérgio Lucena)



















Mais uma noite paulistana, mais uma noite de quarta-feira. É a imersão cotidiana: a quarta-feira, na exata metade da semana, muito embora nem por isso seja ela equilibrada. Os ânimos se acirram, os amores fervilham, os homens e mulheres comuns pegam seus metrôs e ônibus e desejam nada mais nada menos, que vislumbrar o portão tão esperado do lar. A noite é fria, garoenta e paulistana, e os habitantes do Leste Velho seguem rumo ao pretenso aconchego, aos esposos e esposas, namorados e namoradas, mães, pais, amigos, enfim, aonde sintam-se confortáveis de companhia. Desconfio que seja este o motivo pela qual todos entreolham-se no ônibus acuados e desconfiados, outros são mais imponentes e encaram sem temor; alguns simplesmente escondem-se no seu pensamento. Porque o pensamento é o melhor esconderijo do mundo lá fora.

Um samba toca e fala de amor; de briga, de grosseria, de coração partido, entristecido. O último ônibus passa pela praça. O sino da velha igreja toca. Lá fora o frio que parte rumo a outro lugar. Portas de correr fechadas e pichadas. No ônibus um casal briga, ele fitando-a com olhos de ira, ela esquivando-se e rindo, como se o outro disesse uma besteira enorme. Pessoas olham mas não se metem; em mulher e relação dos outros não se mete o bico. Mendigos acendem com custo uma fogueira por debaixo do viaduto. Policiais dormem sem o menor rodeio no plantão. Loucos a vagar pelas ruas mal-iluminadas. Amores perdidos. Trajetos há muito conhecidos. Ar de decadência no ar gelado. Noite. Assombrações a tirar sarro de quem a teme. Vendo e compro jóias. Amarração para o amor. Punks atiram garrafas vazias contra o cemitério. Buracos no asfalto. Nada de flores. Damas-da-noite a perfumar o fim de mais um dia. O casal agora democratiza sorrisos; não mais brigam. Um beijo estalado no ar. O samba agora fala de reconciliação, perdão, sexo disfarçado em poesia. Vira-latas. O apito de um trem de carga, abafado pela distância. Os sonhos se regeneram. Amanhã é quinta, dia de mais amor e labuta.