terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Fé em São Jorge Preto




Por Gabriel Rocha Gaspar

Jorge Ben pintou em 1963 com seu esquema novo de fazer samba, que tirava a bossa nova da sala e atacava na cozinha, de aventalzinho e tudo. O som era mistura de samba de morro com samba branco de classe média, apaixonado pelo jazz e pelos standards americanos, mas também pelo terreiro, pelo beco, pela cachaça. Ben surgiu como cara preta da bossa nova, brasileira, declarada e ostensiva, sem renegar a contribuição musical dos brancos brasileiros e dos afro-americanos.

Caetano Veloso confessa em seu “Verdade Tropical”: “sua agressividade alegre e sua musicalidade deixando à mostra traços crus de samba de morro e blues numa composição de exterioridades nordestinas eram a encarnação de nossos sonhos. Parecia-me que minha ‘Tropicália’ era mera teoria, em comparação”. Ben era mais realista que o rei – ou mais tropicalista que o tropicalismo – no ímpeto pela mistura. Pode até ser coincidência, mas isso tudo combina tanto com o nome Jorge...

Isso porque São Jorge é – com licença, Caetano – a mais completa tradução do sincretismo religioso no Brasil. Seja o guerreiro palestino do século III ou o ferreiro africano casado com Oiá-Iansã, sabemos que, por aqui, ele protege os guerreiros e os pobres; é senhor do fogo, das armas, das facas, lanças e espadas. Santo guerreiro cuja imagem é tão indispensável quanto a roupa do corpo; santo escudo, sério, forte e agressivo, para ser evocado só quando caminhamos pelo vale da morte.

“Jorge de Capadócia” é tudo isso, em palavra, som e poder – seja na voz do próprio compositor ou dos Racionais MC’s. Faltou falar da gravação de Fernanda Abreu com Carlinhos Brown; faltou a do próprio Caetano também, não é? Só para constar, lá vai, em poucas linhas: a primeira faz uma colagem, tenta colocar funk, black, terreiro, bossa-nova e dance dentro da mesma coisa. Soa, no mínimo, desconexo. A gravação do Caetano é, como o nome do disco em que ela aparece anuncia, “qualquer coisa” – o arranjo inteiro prepara terreno para uma apoteose do próprio Caetano, no agudo do agudo do “salve Jorge!”. Meio over...

Solta o pavão
A gravação original foi lançada em 1975, no disco “Solta o Pavão”, penúltimo antes da migração definitiva de Ben para a guitarra. Tudo começa com o clássico violão suingado, acompanhado de João Zim no agogô, batendo tempo e contratempo. A batida surda do bumbo apresenta as vozes de Ben e do Coral do Kojak, entoando “Jorge... de Capadócia”. O estilo do canto evoca o gospel dos negros americanos – principalmente porque Ben aproveita os espaços entre as vozes do coral, com frases como “salve Jorge! Viva Jorge!”, tal qual um pastor. A marcação forte sugere palmas. Depois do último “Jorge...”, a levada da música muda bruscamente.

Entra um teclado em mi menor que não soa triste, mas denso e pesado. Parece música de filme de guerra, sinistra. Principalmente quando entra o arpstrings, que imita o som dos violinos e coros de uma orquestra. Jorge Ben entoa a oração a São Jorge Mártir: “Jorge sentou praça na cavalaria...”. As várias percussões, em primeiro plano, sugerem um terreiro – não pelo tipo de toque, que é de parada militar (pra-cum-dum), constante, mas pelo som seco do atabaque, indissociável das tradições negras, da capoeira e do candomblé.

É sincretismo para todos os lados. A oração é a mesma do santo cristão, mas os instrumentos são africanos; o som do arpstrings remete tanto à música clássica quanto ao gospel americano. E tudo soa improvisado, como boa parte da música de Ben até o final dos anos 70. Parece que saiu ali, na hora. Improviso não é novidade em se tratando de Jorge Ben, mas, aqui, tem algo de novo: o violão é constante, invariável. A virtuose está na voz do mestre, que se distancia léguas da bossa-nova, beirando o berro e a desafinação.

É isso que quebra o tom solene da gravação – no meio da reza pintam uns “sensacional!”, “maravilha!”, “em cima!”. É aquele canto de pergunta e resposta, característico da música negra no mundo inteiro. Está na obra de gente tão diversa quanto Fela Kuti, Bob Marley, Salif Keita, Ladysmith Black Mambazo, Aretha Franklin, Olodum, no samba de breque, no R&B dos 50, 60 e 70, enfim... É som de igreja, coletivo, canto escravo e tribal. É uma espécie de animação, transformando a tristeza de cada um em um desabafo de todo mundo, que puxa para a dança e as palmas. Se tem, não sei, mas garanto que é difícil localizar essa “terapia coletiva” na música de origem européia. O canto coletivo europeu parece tender mais para o hino e para o louvor.

Jorge africano
Por isso, “Jorge de Capadócia” soa tão profundamente arraigada na religiosidade e espiritualidade negras, apesar de glorificar um santo “importado” dos brancos. Extrapolando um pouquinho a letra da música, poderia dizer que este Jorge nascido na cidade de Capadócia é, na verdade, o Ogum natural de Ifé, seu correspondente no candomblé carioca e paulista. Ogum é guerreiro, senhor das armas (“...se quebrem sem o meu corpo tocar”), evocado nas batalhas quando o inimigo é forte e poderoso (“para que meus inimigos tenham mãos e não me toquem!”).

O fotógrafo e pesquisador Pierre Fatumbi Verger conta em seu livro “Orixás”, que Ogum voltou a Irê depois de muitos anos para visitar seu filho, rei daquela cidade. “Infelizmente, as pessoas da cidade celebravam, no dia de sua chegada, uma cerimônia em que os participantes não podiam falar sob nenhum pretexto. Ogum tinha fome e sede; viu vários potes de vinho de palma, mas ignorava que estivessem vazios. Ninguém o havia saudado ou respondido às suas perguntas. Ele não era reconhecido no local por ter ficado ausente por muito tempo. Ogum, cuja paciência é pequena, enfureceu-se com o silêncio geral, por ele considerado ofensivo. Começou a quebrar com golpes de sabre os potes e, logo depois, sem poder se conter, passou a cortar as cabeças das pessoas mais próximas, até que seu filho apareceu, oferecendo-lhe suas comidas prediletas, como cães e caramujos, feijão regado com azeite de dendê e potes de vinho de palma. Enquanto saciava sua fome e sua sede, os habitantes de Irê cantavam louvores onde não faltava a menção a Ògúnjajá, que vem da frase Ògún je aja (“Ogum come cachorro”), o que lhe valeu o nome de Ògúnjá. Satisfeito e acalmado, Ogum lamentou seus atos de violência e declarou que já vivera bastante. Baixou a ponta de seu sabre em direção ao chão e desapareceu pela terra adentro com uma barulheira assustadora. Antes de desaparecer, entretanto, ele pronunciou algumas palavras. A essas palavras, ditas durante uma batalha, Ogum aparece imediatamente em socorro daquele que o evocou. Porém elas não podem ser usadas em outras circunstâncias, pois, se não encontra inimigos diante de si, é sobre o imprudente que Ogum se lançará”.

Em uma discussão, tomar Ogum por testemunha, tocando a lâmina de uma faca com a ponta da língua, é sinal de sinceridade absoluta. Coisa séria. Racionais MC’s bem sabem disso.

Ogunhê!
“Ogunhê!” é a saudação a Ogum, quando ele baixa. “Ogunhê!” é como começa o que talvez seja o disco mais incisivo dos Racionais MC’s, “Sobrevivendo no Inferno”. O álbum os alçou definitivamente ao estrelato, com faixas como “Diário de um Detento”, “Capitulo 4, Versículo 3”, “Em Qual Mentira Vou Acreditar” e vários outros, digamos assim, sucessos. Esse “digamos assim” é proposital. Porque, quem é louco de evocar o poder de Ogum para fazer sucesso?

A chamada de Ice Blue mostra duas coisas: que o disco vem preparado para a guerra; e que Racionais confiam que o santo está do seu lado. O chamado substitui o gospel de Ben na introdução, mas o gospel está em cada segundo da música escolhida por Kl Jay para fazer a base. “Ike’s rap II”, de Isaac Hayes não é exatamente uma música cristã – apesar de integrar o álbum que leva o incisivo nome de “Black Moses” – e ele próprio está bem longe de ser um bom samaritano. Sua fama de proto-rapper gringo deriva não só de seu talento em recitar poesias sobre bases de funk e soul, mas de seu trato explícito com as mulheres e da exibição ostensiva de seu patrimônio.

Mas Hayes foi um garoto pobre de Covington, no Tennessee. Passou fome, catou algodão nos campos do sul – o que suscita em qualquer negrão a memória ancestral da chibata – e cantou na Igreja desde os cinco anos de idade. A música coletiva negra, o gospel em especial, é poderosa em exorcizar males pelo desabafo e pela universalização. O gospel é algo embutido na própria religiosidade do negro. Ultrapassa as fronteiras da religião em si.

Pode estar aí a relação entre a escolha da base e a alma gospel. Apesar do vocal que tende ao soul, da batida típica do rap americano e do solo chorado de guitarra, tão bluesy, essa é a gravação que melhor dialoga com a original – considerando as desconsideradas de Caetano e Fernanda e Carlinhos Brown –, mesmo sem percussão nem violão. Isso porque a evocação de Ogum é como um grito de largada para a improvisação vocal que guia a música inteira, desembocando em um “salve Jorge” melancólico, contrastante com o de Caetano. “Ogunhê!” soa aqui como um lastro de confiança na luta: a certeza de que a palavra mágica voltará o santo contra os inimigos.

Passada a prece, feita com solenidade e devoção, tanto a São Jorge quanto a Ogum, a música sofre um corte abrupto e Mano Brown joga na mesa as suas cartas: uma Bíblia velha e uma pistola automática. Aqui, as armas de Jorge.



Um comentário:

Mixirico disse...

olha os pontos que eu achei...considero-os lindos...

Ogum em seu cavalo corre
E a sua espada reluz
Ogum em seu cavalo corre
E a sua espada reluz
Ogum, Ogum Megê
Sua bandeira cobre os filhos de Jesus
Ogunhê



Cavaleiro na porta bateu
Eu passei a mão na pemba para ver quem era...
Cavaleiro na porta bateu
Eu passei a mão na pemba para ver quem era...
Era São Jorge guerreiro, minha gente !
Cavaleiro na força e na fé
Era São Jorge guerreiro, minha gente !
Cavaleiro na força e na fé


beijos